Premiado no exterior, O Som ao
Redor, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, dá uma cor local e sofisticada à
paranoia urbana
por Ricardo Calil – da revista BRAVO
Os brasileiros habitam, há não
poucos anos, um filme de terror psicológico. Pessoas amedrontadas escondem-se
atrás de muros e guaritas, de cercas elétricas e câmeras de vigilância, de
carros blindados e seguranças particulares – na tensão permanente da espera por
um sequestro-relâmpago, um veículo desgovernado, uma bala perdida ou um ataque
de zumbis do crack. Para a maioria, o momento nunca vem. Mas quando chega para
alguns – e ganha a amplificação massiva do noticiário –um novo ciclo de medo
está garantido.
O Som ao Redor, do pernambucano
Kleber Mendonça Filho, é o filme sobre esse estado de espírito. Nenhuma obra
havia ido tão longe e tão fundo para captá-lo. Nos últimos anos, o cinema
nacional foi pródigo em histórias sobre a violência urbana, recheadas de cenas
de horror explícito – com destaque para Cidade de Deus (2002) e os dois Tropa
de Elite (2007 e 2010) –, mas quase sempre ignorou seu subproduto mais
abrangente e menos palpável: a paranoia de segurança.
Nas entrevistas sobre o filme, o
cineasta gosta de ressaltar seu caráter local, específico:“É um trabalho muito
pessoal, rodado na rua onde moro [em Setubal, bairro de classe média da zona
sul do Recife]”. Assim, ele reafirma a máxima de Tolstói transformada em clichê
jornalístico: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O Som
ao Redor tornou-se a mais aclamada produção brasileira desde Cidade de Deus. A
trajetória se inicia com o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema
(Fipresci) no Festival de Roterdã (Holanda), passa pela Mostra de São Paulo
(melhor filme) e pelos festivais do Rio (filme e roteiro),de Gramado (som,
crítica, público e diretor), de Copenhague, na Dinamarca (filme), e de NoviSad,
na Sérvia (filme), até chegar à lista dos dez melhores do ano do New York Times
(ao lado de nomes célebres, como Quentin Tarantino, Steven Spielberg e Michael
Haneke).
Ciranda vigiada
As honrarias seriam suficientes
para deixar o diretor deslumbrado se ele fosse do tipo deslumbrável (e se não
tivesse construído uma carreira sólida antes de sua estreia em longas de
ficção). Kleber Mendonça tem 44 anos, nasceu no Recife e passou cinco anos de
sua adolescência na Inglaterra, o que lhe deixou como legado certa ironia
britânica, presente também em sua obra. Estudou jornalismo na Universidade
Federal de Pernambuco, tornou-se crítico de cinema e realizador de curtas
premiados, como Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e Recife Frio
(2009), além do documentário Crítico (2008).
Muitos dos temas e um tanto do
estilo apresentados em seus curtas voltam a O Som ao Redor maturados,
reelaborados e redistribuí-dos numa estrutura de mosaico. A câmera se alterna
entre um punhado de personagens centrais: um ex-senhor de engenho que é dono de
quase todo um bairro na capital pernambucana (W. J. Solha); seu neto, que cuida
de negócios imobiliários (Gustavo Jahn); uma dona de casa que, atormentada
pelos latidos do cachorro do vizinho, só se relaciona plenamente com
eletrodomésticos (Maeve Jinkings); e um segurança particular (Irandhir Santos),
líder de um grupo que oferece serviços de proteção aos moradores da rua –
trazendo paz para alguns e mais tensão para outros.
Em torno deles, há uma ciranda de
personagens que parece uma versão da Quadrilha de Carlos Drummond (“João amava
Teresa que amava Raimundo...”), na qual o amor foi substituído pelo medo:
crianças que brincam nos prédios, vigiadas por babás, vigiadas por moradores,
vigiados por porteiros em uma rua agora vigiada por uma espécie de milícia.
O Som ao Redor não apenas
desconstrói a arquitetura do medo à brasileira, como ainda desenterra suas
raízes históricas – mostrando que a divisão entre casa-grande e senzala resiste
nos apartamentos da classe média, com seus minúsculos quartos de empregada, e
que a violência das disputas de terra migrou para a especulação imobiliária nas
grandes cidades. O filme consegue dar conta dessa tarefa complexa sem recorrer à
pirotecnia de Cidade de Deus nem ao didatismo da narração em off de Tropa de
Elite. Kleber Mendonça não oferece um tratado sociológico, mas uma experiência
cinematográfica em que ruídos dizem mais que palavras, personagens são definidos
pelo que escondem, não pelo que mostram, e ferramentas do meio são aproveitadas
ao máximo: a tela panorâmica do formato Cinemascope,a gama de possibilidades da
edição de som.
Os festivais e críticos, no
Brasil e no exterior, reconheceram essas duas virtudes centrais do filme: utilizar
com sutileza e sofisticação os recursos visuais e sonoros que só o cinema
oferece e dar a um tema universal – o medo da violência – um olhar original e
específico, com distinto foco brasileiro, pernambucano.