O africano Abram Petrovich
Gannibal, que chegou à Russia como escravo e virou governador, foi o primeiro
intelectual negro da Europa
por Emiliano Urbim – da revista
Superinteressante
Gannibal, de escravo a governador |
"Dispensado! Após 57 anos de
serviço leal, sem razão ou recompensa!", queixava-se o recém-ex-militar em
uma carta a Catarina, a Grande, soberana do Império Russo. Como reparação, ele
exigia uma promoção ao posto de marechal e pensão vitalícia. Seu pedido, no
entanto, foi ignorado, e o jeito foi aceitar a aposentadoria forçada na sua
casa de campo. Tudo bem: encerrar a vida como aristocrata rural era bem
agradável. E, no caso do negro Abram Petrovich Gannibal, vindo da África para ser
escravo na Rússia, lendário. Nascido em 1696 na Etiópia, aos 7 anos o menino
foi capturado e despachado para o sultão de Constantinopla, e logo revendido à
corte de São Petersburgo - era moda entre os monarcas colecionar crianças
exóticas. Inteligente, o menino conquistou o czar Pedro, o Grande, que arranjou
sua alforria e se tornou seu padrinho - daí o sobrenome imperial, Petrovich. Quando
fez 20 anos, o cavalheiro negro foi enviado a Paris para concluir seus estudos
e, nas horas vagas, espionar um pouco. Russo, negro e nobre, o paradoxo
ambulante logo se enturmou com a galerinha alternativa da época: Diderot,
Montesquieu e Voltaire eram seus amigos e o chamavam de "estrela negra do
iluminismo". Seu biógrafo, Hugh Barnes, crava: Abram foi o primeiro
intelectual negro da Europa. Formado em belas-artes e na arte da guerra, fez
"estágio" em um conflito entre França e Espanha, de onde saiu
capitão. A fama de estrategista lhe inspirou um novo sobrenome, Gannibal - em
russo, Aníbal, um general africano que assombrara a Europa 2 mil anos antes. A
volta para a Rússia, em 1722, foi cheia de glórias - breves. Morto o padrinho,
Abram recebeu uma missão supimpa: deixar nos trinques várias fortalezas na
Sibéria, que, como ensina o anúncio de TV a cabo, é bem ruim. Foram 4
congelantes anos até que seus dons como engenheiro militar chamassem atenção e
o tirassem do exílio. Reintegrado à aristocracia, Gannibal ascendeu na
hierarquia política, militar e diplomática. Assim como o Otello de Shakespeare,
o "mouro de Petersburgo" havia feito ao Estado alguns serviços, e
eles sabiam disso. Tanto que lhe deram, em 1741, um belo sítio na província de
Pskov, com milhares de pinheiros e centenas de servos. O escravo africano havia
se tornado um nobre russo dono de escravos. Comparando com o Brasil, é como se
Zumbi virasse barão das Alagoas. Após apelar e perder com a czarina Catarina,
Gannibal terminou seus dias isolado no campo. Apesar da vida singular, na
Rússia ele é só um antepassado de alguém mais famoso: bisavô de Alexandre
Pushkin, pai da literatura russa.
Grandes momentos
• A história de Gannibal tem mais
conexões literárias: o oficial russo que o levou da Turquia para São Peterburgo
foi Pyotr Andreyevich Tolstói, bisavô do autor de Guerra e Paz.
• Promovido à nobreza, ele
espalhou que era um príncipe africano. Verdade ou não, acreditava na história e
criou um brasão de família com a imagem de um elefante.
• Alguns autores defendem que
Gannibal se envolveu na conspiração que matou Pedro 3º e colocou Catarina, a
Grande em seu lugar. Nessa versão, ele esperava uma grande recompensa e teria
sido traído na última hora.