'Se um pai não dava a filha, eles matavam', diz Sebastiana
Medeiros
Sobrevivente diz que soldados do Exército eram truculentos e
vingativos
Leonencio Nossa e Celso Júnior – de O ESTADO DE SÃO PAULO
Pelas indicações obtidas durante três semanas de buscas,
Sebastiana Medeiros, 102 anos, vive numa casa atrás de uma oficina mecânica, na
periferia da cidade de Caçador, Santa Catarina. Matriarca de uma família
numerosa e trisavó de quatro jovens, ela mora sozinha num porão alugado por R$
80. É com uma reza que ela recebe a equipe de jornal. "Quem deu minha
notícia?", pergunta, com as mãos juntas, em forma de oração. Sebastiana
convida para entrar no porão. "Estou muito contente", diz a senhora,
com a hospitalidade típica das pessoas do oeste catarinense. "Quando a
guerra começou, eu devia ter um ano e meio mais ou menos", relata.
"Da guerra, lembro pouco. Lembro mais o que os meus troncos velhos (pais)
contavam", completa. "Um compadre meu venceu a guerra comendo carne
de cachorro sapecado em capim barba-de-bode, para não morrer de fome. Tirava os
pés e o couro do cachorro e botava fogo no capim." Ela tinha três anos
quando a guerra começou e sete quando o conflito terminou. Com olhos bem
abertos, diz que é a última sobrevivente da guerra. "Fui crescendo, fui
ficando mocinha, altinha, de boa altura, de boa presença, e aí os mocinhos já
foram gostando (risos)", relata. "As crianças guardaram a guerra na
lembrança, como eu guardei. Da minha irmandade, da minha descendência, quem
está existindo mesmo daquele tempo, só esta velha. O mais não existe." A
voz aguda de Sebastiana, a expressão facial e os gestos das mãos que acompanham
o ritmo e a força de cada palavra lembram as marcas das personagens contadoras
de histórias de Erico Veríssimo. Sebastiana compara a atuação dos soldados do
Exército e da polícia com agentes da atualidade. "Os soldados que hoje
existem não têm a metade da violência daqueles soldados do tempo da guerra dos
jagunços", avalia. "Foi um tempo de revolta, violência, cavalaria,
arma, munição", conta. "O senhor tinha uma vaca de leite e pedia para
não matarem, aí é que matavam. Ninguém mandava no que tinha e na lida. Era o
Exército quem mandava. Se o senhor por acaso tinha uma filha moça e o Exercito
chegava... pelo amor de Deus. 'Eu quero sair um pouquinho com sua filha', dizia
o soldado. "Se não dava a filha, eles matavam o senhor."
Espada no pescoço. Voz firme como toda boa contadora de
histórias, Sebastiana fala de pistolas, revólveres e espadas e violência contra
prisioneiros. "O Exército era de guerra mesmo, com batalhão de guerra.
Tinha a espada de guarnição. Degolava, degolava. O que não queria se entregar,
eles matavam degolado. Não dissesse que não se entregava, eles matavam",
relata. "O caboclo que agredia era morto a tiro. O que não agredia era
degolado, passavam a espada no pescoço", ressalta. "Não tinha pai por
filho, filho por pai, mãe por filha, filha por mãe. Os parentes eram tudo obra
estranha. Não podia acudir um parente, que morria. Meu Deus, do céu. Foi um
tempo bravo, bravo, bravo." Os relatórios militares descrevem milhares de
casebres incendiados. Sebastiana também comenta sobre a destruição das casas.
"Sobrou bem pouco da guerra dos brasileiros contra os caboclos. Os
batalhões colocavam fogo nas casas, queimavam tudo o que tinha dentro",
diz. "Se o caboclo tinha um porquinho no chiqueiro, não era dono. Eles
tiravam o bichinho do chiqueiro e metiam a faca no pescoço, sem pedir",
completa. "Morreu muita gente naquela guerra dos jagunços. O que tinha de
povoado no mundo inteiro ficou muito pouco. Meu Deus do céu, meu Deus do céu,
meu Deus do céu! Era espada na água."
Leia abaixo o depoimento de Sebastiana Medeiros: "Sou
cerne de cambará"
"Batalhões de inocentes ficaram jovens sem
pai, sem mãe, sem irmão mais velho. Se criaram no mundo sem ter ninguém. Depois
da mortandade de gente, os bichos mexiam com aquela gente que ficava em cima da
terra. Ficava aquele cheiro. Ficou arretado. Foram uns tempos bem bravos. Os
mortos eram deixados no limpo. Os corvos davam fim. Os batalhões da guerra não
escolhiam, fosse branco, brasileiro, alemão, caboclo, o que encontravam, eles
derrubavam. Não deixavam em pé uma pessoa. Não tinham dó. Quem ficava na mira
dos piquetões se acabava. Não gosto nem de falar. Os vaqueanos foram os
primeiros a acabar. Eram dos brasileiros e daí o jagunços não gostavam de
brasileiros. Sofreram. Teve uma tia minha, mulher de um tio meu, que estava
para ganhar neném naqueles dias, gêmeos, eles mataram a mulher e jogaram as
crianças na cerca. Adeodato. Não conheci, mas ouvi falar. Até ele matou duas
irmãs da minha mãe Maria e Julia Caetano. Ele era padrinho delas. Matou por
bandido que era. Já tinha matado as mães e os irmãos. Eu nasci em Rio das
Pedras, que agora é município de Fraiburgo. Fui nascida na colônia do meu pai.
De lá, me arretirei, porque meu pai vendeu a colônia dele. Saí de lá com 5
anos. E fui para Rio Bonito, para quem vai para Curitiba. A gente morava nas
casas onde moravam os trabalhadores da estrada de ferro. Sempre tive fé.
Naquele tempo da guerra, quando uma senhora ganhava um pequeno, São João Maria
era o padrinho. Não se colocava outro acima dele. Sou afilhada dele. Na guerra,
minha mãe viu jagunços chegarem, arrumou as mãos e pediu: 'São João Maria salve
ao menos um da minha família para contar para os outros que estão lá no sítio'.
Então, São João Maria salvou minha mãe e dois filhos dela. Depois da guerra,
ela e meus irmãos morreram. Eu fui a única que restou da Irmandade. Sobrevivi.
Nem tio, nem esposo, nem tia, nem prima sobreviveram. Mas olhe, eu, ainda no
ano passado, capinei e plantei e colhi feijão em Calmon. O doutor que me
consultou no hospital me olhou bem e disse: 'Vozinha, a senhora erga sua cabeça
e me olhe'. 'Por que, doutor?' Ele me disse: 'A senhora não é mais gente para
estar aqui no nosso mundo. É para estar lá no mundo de Irmã Paulina. Sua idade
já venceu. A senhora conhece o cerne do cambará?' 'Já ouvi os mais velhos
falarem. Ele deu uma baita risada. 'O cerne do cambará nunca acaba.' Quem busca
a fé, quase sempre encontra. Quem guarda o segredo, busca a fé. Foi o que São
João Maria enxergou. Os homens fazem guerra pelo estado da fé. Se o senhor tem
uma dúvida e quer se vingar, o senhor faz guerra. Não tenho estudo de aula. Meu
estudo é só o da minha fé. Eu trabalhava na enxada, na foice, no ferro. Cansei
de ajudar meu esposo a derrubar tora. Sabe que eu sou vencida. O sangue caboclo
dura 60 descendências de família, para ver o quanto é forte. E tenho o sangue
caboclo que se misturou com o alemão. Eu assisti duas guerras. A do Aleodato e
dos jagunços. Sou a única pessoa que existe daquela época, de raiz. Dessa
época, a única descendência que sobreviveu foi a Sebastiana. A minha família é
toda de raça cabocla. Eu sou sangue de caboclo e sangue de alemão. Meu bisavô,
que era casado com a bisavó, mãe da minha mãe, era alemão. E foram pegados a
cachorro no mato. Os batalhões iam para os sítios pegarem os bugres a cachorro
no mato, pegaram minha bisavó e meu bisavô. Os dois se criaram com gente que
podia criar eles. Minha bisavó era daquela bem cabocla, com beiço virado, que
assoviava, nem falar falava. Ela foi achada no mato pelos fazendeiros... dentro
do oco da madeira... os cachorros farejaram... e os homens encontraram os
meninos. Um se criou com um fazendeiro, outro com outro. Depois, eles se
casaram. O alemão se interessou por ela e se casou. A família dele virou tudo
caboclinho. E uma peça sou eu, e aqui existo. Os soldados andavam com roupa cor
tipo zinco, que antigamente existia. Os jagunços atiravam, mas não pegavam no
corpo deles. Um irmão se escondeu dentro de um cesto de taquara. Nasci em oito
de outubro, o ano não me lembro mais. Na minha época de mocinha, a gente ouvia
música antiga, rancheira, xote. Era tempo de muita mata. Foram cortando... veio
o planto de pinho, eucalipto. Negócio de lote já não se compra mais barato, e
foi que começou a aumentar o preço da terra. De primeiro achava um terreno
deserto. Não tinha terra vendida. Começaram a fazer a linha de trem de ferro,
em cima daqueles dormentes. Quando cruzavam os trens, chacoalhavam aqueles dormentes.
Tem gente que tem orgulho da minha vitória. O que guerreou numa guerra é
revolucionário. Sempre fui uma pessoa cuidadosa. Nunca deixei chegar uma ponta
de tesoura no meu cabelo. Nunca usei joia. Na obra, Deus disse para não usar
negócio de joia, pulseira, relógio... dessas passadeiras bonitas no cabelo
também não uso. Naquele tempo antigo, pintura também se proibiu. Hoje, estou
mais leve que uma palha. Estou muito contente, é uma paz, um sossego. É a
miudeza dessa fraqueza."