LEÃO SERVA – especial para a FOLHA
DE SÃO PAULO
Kevin Carter venceu com esta foto o Pulitzer de 1994 (uma criança subnutrida observada por um abutre, no Sudão). |
A morte do cinegrafista francês
Gilles Jacquier, 43, na cidade de Homs, na Síria, no dia 11 de janeiro, vem se
somar a uma longa lista de repórteres de imagens mortos em áreas de conflito na
história recente do jornalismo.
Antes dele, a Primavera Árabe
já tinha tirado de um só golpe a vida de dois importantes fotógrafos de guerra
da atualidade, o inglês Tim Hetherington e o americano Chris Hondros. Os dois
morreram na Líbia, em abril de 2011, atingidos por um morteiro disparado pelo
Exército do ditador Muammar Gaddafi em Misrata, cidade controlada pelos
rebeldes (que viriam a vencer a guerra civil no país). O petardo ainda feriu
outros dois fotógrafos.
Hetherington vinha de anos de
produção consagradora cobrindo a ocupação americana do Afeganistão. Ali, ele
fez a foto que ganhou o Prêmio World Press (o "Oscar do
fotojornalismo") de 2007 e realizou, com câmera de última geração, o longa
"Restrepo", indicado ao Oscar de documentário e escolhido como melhor
filme do festival Sundance em 2010.
Em entrevista à então
correspondente da Folha em Washington, Andrea Murta, no lançamento do filme,
Hetherington disse que "é muito fácil ficar viciado" em guerras. A
frase lembra a de Duck, personagem do filme "A Caçada" (2007), ficção
baseada em fatos reais na Bósnia: "Estar tão perto da morte e sentir-se
assim tão vivo é viciante. Quem disser o contrário estará mentindo".
A morte de Hetherington teve
várias coincidências com a do maior fotógrafo de guerra de todos os tempos,
Robert Capa (1913-54), no Vietnã. Ambos morreram aos 40, em conflitos
assimétricos, em países do terceiro mundo, já consagrados e experimentando uma
ampliação da carreira para o cinema.
Guerras matam muitos
jornalistas. Mas, entre eles, fotógrafos e cinegrafistas são as principais
vítimas. E a proporção cresceu nos últimos tempos. Relatório da ONG
internacional Comitê para a Proteção de Jornalistas aponta que 40% dos
jornalistas mortos em ação em 2011 eram fotógrafos ou cinegrafistas, o dobro da
média histórica apurada desde 1992.
Ao produzir suas imagens,
muitas vezes os repórteres fotográficos se expõem a riscos. Até mesmo jornalistas
de texto ou de voz estão convictos de que os de imagem são os mais valentes,
como escreve David Halberstam em "Requiem", homenagem aos 135
fotógrafos que perderam a vida na mesma guerra do Vietnã que matou Capa:
"Nós, jornalistas de texto, sempre soubemos que os fotógrafos eram
realmente os corajosos. Só existe uma forma de eles produzirem intimidade com a
cena: serem testemunhas oculares".
Há várias razões para essa
exposição ao risco. O vício mencionado por Hetherington pode ser uma delas, mas
certamente tem grande importância a ideia expressa na frase de Capa: "Se
suas fotos não estão boas o suficiente, é porque você ainda não está perto o
suficiente", como consta no livro "Ligeiramente Fora de Foco"
[trad. José Rubens Siqueira, Cosac Naify, 296 págs., R$ 69], que narra sua
participação na Segunda Guerra Mundial.
Desde Capa, a proximidade do
repórter fotográfico em relação ao objeto passou a ser uma lei da fotografia,
um regimento profissional, que prescreve opções subjetivas, estéticas, as quais
se confundem com imposições técnicas e objetivas. O mandamento de Capa
constituiu uma gramática da fotografia de guerra (o sujeito deve estar junto de
seu objeto), mas impõe um efeito colateral: a morte frequente.
TELEOBJETIVAS
Ao aplicar sua concepção
teórica, Capa recusava as teleobjetivas, preferindo as lentes de 50 mm, que os
fotógrafos chamam de "lente normal" por ser a que melhor reproduz o
ângulo de visão do homem.
A 50 mm capta a imagem de
objetos que estão em um campo de 45º à frente, muito semelhante ao campo de
visão do olho humano. Mais longas, as teles só deixam entrar a imagem de
objetos que estão num pequeno campo de visão. Por isso eles parecem tão
ampliados: porque uma pequena fração da imagem ocupará toda a foto.
Uma tele de 600 mm tem um campo
visual de apenas 4°. Esse "afinamento" provoca outro efeito: a
perspectiva se desfaz, some a percepção das diferentes distâncias dos objetos,
tudo o que aparece na foto parece estar à mesma distância. A tele
"chapa" o fundo, como acontece com a visão de um homem que vê com um
só olho.
Ao dizer que uma foto é boa quando
feita de perto, portanto, Capa elabora um conceito estético mas também técnico,
a partir da geometria, em busca do que considera a perspectiva
"verdadeira".
ÉTICA
Sua ideia tem também uma
decorrência ética: se a foto feita de longe distorce a posição dos elementos,
ela fere o princípio de fidelidade do jornalismo.
Um fotógrafo, no entanto, usou
a teleobjetiva para produzir uma grande foto cujo impacto vem exatamente da
redução da profundidade. O sul-africano Kevin Carter foi colhido por uma
polêmica em 1994, quando conquistava um dos maiores prêmios do jornalismo
internacional, o Pulitzer.
Carter era parte de uma turma
de jovens e audazes fotógrafos brancos, nascidos na África do Sul do apartheid,
que se destacara na cobertura dos conflitos que quase resultaram em guerra
civil na transição para a democracia multirracial criada sob o governo de
Nelson Mandela, no início dos anos 1990.
Kevin e seus amigos estavam
sempre a postos para testemunhar casos de violência, conforme conta o
"Clube do Bangue-Bangue" [trad. Manoel Paulo Ferreira, Companhia das
Letras, 344 págs., esgotado], escrito por dois deles, Greg Marinovich e João
Silva.
Carter foi para o Sudão em
março de 1993, para documentar a guerra civil entre tribos cristãs e o governo
islâmico. Lá, fez uma foto muito impressionante num acampamento de refugiados:
um menino subnutrido à beira da exaustão é observado por um abutre que parece
esperar sua morte.
A foto é chocante. Publicada
pelo "New York Times", correu o mundo. No ano seguinte, ganhou o
Pulitzer de fotografia, o que deflagrou uma intensa polêmica: o que ele fez
para salvar a criança? Como fotógrafo, buscou a foto chocante em vez de
espantar o bicho?
A polêmica, porém, é toda
imotivada: a foto sugere algo irreal. Há uma ilusão de óptica: a imagem foi
feita com uma tele de 180 mm, que distorce a perspectiva. O abutre parece estar
mais perto, o que dá a falsa impressão de espreita.
Carter caiu em depressão meses
depois de receber o prêmio e veio a se matar no mesmo ano. Sua foto é um
exemplo de como a aura de pecado se abate sobre quem não segue o mandamento de
Capa.
NAVALHA
A administração da distância é
o fio da navalha sobre o qual se move o fotógrafo: se fica muito longe, não
consegue uma cobertura "quente"; se chega muito perto, corre perigo
de morte. Ao mesmo tempo, a proximidade expõe ao risco de produzir um retrato
parcial do conflito.
O senso comum fixou a ideia de
que o risco é inerente à fotografia de guerra, uma vez que ela só poderia se
realizar a pequena distância do fato, o que muitas vezes implica risco de morte
ou parcialidade. A tensão entre proximidade, risco e adesismo se cristalizou no
cinema em filmes que têm fotógrafos como personagens, como "Sob Fogo
Cerrado" (1983), de Roger Spottiswoode, "Salvador, O Martírio de um
Povo" (1986), de Oliver Stone, e "Antes da Chuva" (Milcho
Manchevski, 1994).
Mas uma análise dos
equipamentos e da técnica fotográfica revela que a necessidade de proximidade
em relação à fonte do risco de morte é falsa. O exemplo mais conhecido é a
cobertura de eventos esportivos. A fotografia esportiva mostra que hoje já é
possível retratar as cenas com precisão sem chegar tão perto.
EVOLUÇÃO
Depois de anos de uma evolução
estética que resultou em fotos absolutamente fechadas (em vez de um gol, o
fotojornalismo dos anos 80-90 tentava mostrar detalhes como a expressão facial
do autor do gol ao chutar), a foto esportiva vem recuperando os planos abertos,
que permitem ver as jogadas e seus contextos.
Paralelamente, a evolução dos
equipamentos, com a fotografia digital superando a resolução dos filmes
químicos, torna possível, por exemplo, captar a imagem de um campo de futebol
inteiro e recortar da imagem a cena específica que interessa publicar.
Essa possibilidade técnica, no
entanto, tem sido refutada sob o argumento de que pode significar falseamento.
É uma decisão coerente com o mandamento de Capa, mas que não se justifica à luz
da técnica em si, e possivelmente nem da ética, caso se compare o ganho, com a
redução de mortos e feridos, com os riscos de eventual adulteração da imagem
(até porque os registros que a câmera eletrônica produz sobre seus fotogramas
são detalhados como um RG e podem ser usados para conhecer as alterações feitas
no original).
Da mesma forma que nos estádios
olímpicos, os recursos técnicos já poderiam dar aos repórteres fotográficos a
chance de documentar cenas de conflito sem necessariamente se aproximar tanto
de seu objeto.
Então, por que morrem tantos
fotógrafos de guerra? Morrem por uma ideologia.