'Um dia é pouco para eu contar tudo o que vivi', diz Maria
Trindade Martins
Sobrevivente da guerra, ela evita falar da experiência e não
perdoa os líderes dos caboclos
Leonencio Nossa e Celso Júnior – de O ESTADO DE SÃO PAULO
Maria Trindade Martins, 105 anos, mora num barraco de
madeira nos fundos da casa do filho Chico. Os mais novos a conhecem em Lebon
Régis como a "mãe do Papai Noel" - o pedreiro Chico, construtor de
capelinhas de túmulos de cemitério, se veste de bom velhinho para conseguir uma
renda extra no final do ano. Já os moradores mais antigos lembram dela como a
parteira da cidade. Maria diz que "pegou" mais de 200 meninos. Maria
foi descoberta pela reportagem do Estado por acaso. Depois de uma semana de
pedidos de informações sobre o paradeiro de Virgílio Leão de Carvalho, um
remanescente dos redutos rebeldes que estaria com 102 anos e morando em Lebon
Régis. Um blogueiro, o jornalista Cícero Machado, informou que ele morrera
havia uma semana. Machado e uma professora ajudaram a localizar outra
sobrevivente da guerra que morava no município e estaria lúcida. Era Maria. Ao
lado de um fogão de lenha e na companhia da inseparável Linda, uma pequena
cadela, Maria descreve os dias difíceis sofridos por crianças e adultos durante
a "guerra dos jagunços". Ela relata que os caboclos chegaram a comer
até couro de cintos para saciar a fome. Maria tinha seis anos quando a guerra
começou e 10 quando o conflito terminou. "Eu passei fome no mundo. Sei o
que é fome", relata. "Nossa, a gente sofreu muito. Um dia é pouco
para eu contar tudo o que vivi." Maria evita falar de sua experiência em
redutos rebeldes. Não perdoa os líderes dos caboclos. Em seus relatos, Adeodato
é tão vilão quanto os militares. Reclama tanto dos chefes rebeldes quanto dos
homens do Exército. Ela acusa os dois lados. Quem ouve sua história tem
dificuldade de saber se Maria acusa "pelados" ou "peludos".
"Eles tiravam os seios das mulheres, matavam. Eram bandidos. Não eram
maus, eram bandidos", ressalta. "Morreu muita gente matada, muita
criança", completa. "Matavam os pobrezinhos dos anjos, pecado." Falante
e com olhos brilhantes, Maria está longe de parecer uma mulher centenária. É
verdade que os olhos perderam a tonalidade castanha, ficando quase azuis. Ela,
porém, mantém uma voz firme e uma expressão forte. Reclama que as vistas não
"dão mais". Para mostrar sua fé em São João Maria, vai até o quarto
e, depois de alguns segundos, volta com um pequeno quadro com o retrato do
monge. "Meu santinho está se apagando", constata. "Antes, eu
enxergava a panelinha na mão dele." Ela diz que a fotografia de São João
Maria pertencia à sogra. Depois, a imagem passou para o seu marido, Pedro Lins,
morto há quase 20 anos. "Eu acendo até velinha para São João Maria, porque
não sei se é vivo ou morto. Se não for, não tem problema", diz, sorrindo.
Maria conta que o pai era alemão e a mãe era uma cabocla "bem
morena". A mãe morreu quando ela ainda era criança, deixando cinco
crianças menores. "Só durei até hoje porque tenho sangue de bugre",
avalia. "Fui picada por cobra, apanhei de tapa, chinelo e vara de marmelo",
conta. "Estou viva porque Deus não se lembrou de mim." Do casamento
com Pedro Lins, filho de rebeldes, Maria teve cinco filhos, três homens e duas
mulheres. Ainda criou outros três meninos de uma relação anterior de Pedro. Reclama
que, hoje, as crianças e jovens cumprimentam rapidamente os mais velhos.
"Um afilhado nem louvado dá mais. Agora, é só boa tarde, bom dia, boa
noite. Que esquisito", diz. "Não canso de dizer: que bonito dizer:
Deus te abençoe. Vou achar um velho tão velho quanto eu para dizer: Deus te
abençoe."
Leia abaixo o depoimento de Maria Trindade Martins:
"Nasci no dia 8 de maio de 1906, numa casa perto da
coletoria velha, aqui em Lebon Régis. Não conheci meu pai, um alemão. Minha mãe
era brasileira, bem morena, de cabelos compridos. A gente trabalhava na roça,
com foice, machado. Já derrubei mata. Hoje, não presto. Mas não posso ficar
parada. Tive cinco filhos, criei todos. Acendo sempre uma vela para São João
Maria. Tenho muita fé. Tudo o que eu peço ele me dá. (Mostra um retrato antigo
do monge). Muita gente virou crente. Eu não viro. Morro católica. Os jagunços
eram todos devotos de São João Maria. Minha mãe me batizou na água sagrada.
Aguentei até agora porque tenho fé em São João Maria e porque tenho sangue de
bugre. Depois da guerra, passavam aquelas crianças famintas na estrada, eu
ficava olhando. Elas não podiam comer tudo que estava na mesa, porque tinham
passado muita fome na guerra e só conseguiram chupar osso e comer broto. Muitas
morriam. É triste. Agora a minha cabeça não está mais prestando, não. As coisas
fogem da minha cabeça. Eu me esqueço. Às vezes, eu penso: O que eu iria fazer?
Não lembro mais. O juízo já não guarda mais."