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sábado, 18 de fevereiro de 2012

Guinsburg e Tévye, o Leiteiro


Aos 91 anos, o crítico teatral, ensaísta e fundador da editora Perspectiva Jacó Guinsburg dá sequência ao antigo projeto de publicar autores de literatura ídiche, lançando o clássico 'Tévye, o Leiteiro', de Scholem Alekhem, com tradução sua
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
J. Guinsburg (foto: Márcio Fernandes)
Ao fundar a Editora Perspectiva, em 1965, o professor, crítico teatral, tradutor, ensaísta e editor Jacó Guinsburg tinha dúvidas se iria sobreviver num mercado com pouco interesse pela cultura judaica e pelo teatro - duas de suas maiores paixões. Aos 91 anos, em plena atividade, o diretor-presidente da Perspectiva anda às voltas com a tradução da gramática hebraica que o filósofo Baruch Spinoza deixou incompleta. Professor emérito da USP, Guinsburg fez do teatro a área nobre de sua editora. Quase 200 obras - um quinto do seu catálogo - são dedicadas a ensaios sobre mestres como Stanislavski, Brecht, Pirandello e Beckett. Agora, dois novos títulos ampliam esse catálogo, Teatro Espanhol do Século de Ouro, coletânea organizada por Guinsburg e Newton Cunha, e Tévye, o Leiteiro, de Scholem Aleikhem (1859-1916), traduzido pelo editor.
Por uma dessas coincidências, Tévye, o Leiteiro chega às livrarias um mês antes da estreia, em São Paulo, do musical baseado no livro de Aleikhem, Um Violinista no Telhado, montagem da dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho (dia 22 de março, no Teatro Alfa). Tévye, no entanto, é mais que o personagem de um popular musical da Broadway (gênero descendente do teatro ídiche) e do filme homônimo, de 1971, vencedor de quatro Oscars, que consagrou o ator Chaim Topol como o leiteiro exilado em decorrência de um decreto do czar que o obriga a deixar sua aldeia. Ao escrever a história de Tévye, um dos grandes personagens da literatura ídiche, Aleikhem (ou Sholem Aleichem, que em hebraico significa "a paz esteja contigo") antecipava o próprio destino, pois foram os constantes pogroms na Rússia que levaram o escritor a se instalar em Nova York.
Ao se estabelecer nos EUA, Aleikhem já era um dos principais representantes da literatura ídiche, tendo produzido, até 1890, mais de 40 livros no vernáculo dos judeus do Leste Europeu- que conquistou o território do hebraico litúrgico. A obra de Aleikhem, diz Guinsburg, é a expressão fidedigna da vida judaica no chamado "schtel", povoado em que viviam os judeus na Europa Oriental. Ao retratar as mudanças por que passaram seus habitantes no fim do século 19, desafiados pela nascente modernidade, Aleikhem fez desse confronto uma parábola sobre os acontecimentos revolucionários que iriam mudar a face da Rússia czarista no século 20.
"Não é preciso lembrar que a participação dos judeus nos movimentos socialistas europeus do século passado foi enorme", diz Guinsburg, observando, porém, que Aleikhem não era um escritor engajado, embora fosse simpático ao sionismo. Ele defendia as causas populares de outra forma, usando uma narrativa paródica que permitia ao homem do "schtel" se ver refletido no espelho literário de obras como Tévye, o Leiteiro. Nela, o protagonista interage com o autor e acaba se impondo, oferecendo ao leitor a imagem do judeu maltratado pelo russo e, finalmente, isolado na própria comunidade em que vive - até pelas próprias filhas, avessas às tradições judaicas.
Ao contrário das filhas de Tévye, Jacó Guinsburg é reverente à cultura judaica, embora seja um judeu laico. Foi com a Coleção Judaica, série de 13 volumes dedicados a ela, que começou a Perspectiva, vendendo em pagamentos parcelados um produto que ainda não existia para compradores que acreditaram nele. O editor cumpriu o compromisso em quatro anos, publicando integralmente a coleção, que ganhou um volume adicional. Guinsburg dividiu-o em dois: o primeiro sobre o estudo da oração e o segundo sobre a relação dos judeus com a modernidade. No entanto, ficou a frustração de uma segunda etapa planejada para a coleção, que seria dedicada aos melhores autores de origem judaica. Vale lembrar que Guinsburg foi o primeiro editor de Isaac Bashevis Singer (1902-1991) no Brasil, 30 anos antes da consagração do escritor americano de origem polonesa com o Nobel de 1978.
O editor traduziu sua coletânea Joias do Conto Ídiche na primeira editora que fundou, a Rampa, fechada em 1947 com apenas quatro livros no catálogo. O motivo, além da falta de capital para continuar o negócio, era o pouco interesse do mercado por obras como essa. Naquele época, autores judeus eram pouco lidos no Brasil - e continuam sendo, excetuando-se os mais evidentes. O projeto de publicar a coleção literária judaica foi, então, adiado. "Nomes como (Isaac Leib) Peretz e Scholem Aleikhem estão por trás da grande literatura de Bashevis Singer, mas são pouco conhecidos dos leitores brasileiros", observa Guinsburg, citando uma dezena de outros autores na mesma situação, entre eles Moshe Shamir, Mêndele e Agnon, primeiro escritor israelense a receber o Nobel (em 1966). Ele ainda não havia sido agraciado com o prêmio quando Guinsburg comprou os direitos de Novelas de Jerusalém, um dos três livros seus publicados pela Perspectiva (os outros dois são Contos de Amor e Uma História Simples).
Por essa época, o editor vivia das aulas de crítica teatral na Escola de Arte Dramática (EAD) da USP, onde iniciou a carreira de professor em 1964, e colaborava com regularidade no Suplemento Literário do Estado, que se tornaria o principal órgão de divulgação da literatura ídiche e do teatro russo (no qual Guinsburg, nascido na Bessarábia, hoje Moldávia, é especialista). Por ter estudado filosofia na Sorbonne, o editor, convidado pelo engenheiro têxtil Paul -Jean Monteil, trabalhou durante dez anos na editora que o empresário francês, ex- funcionário da Rhodia, fundou após o fim da 2.ª Guerra, a Difel (Difusão Europeia do Livro), antes de criar a Livraria Francesa. Guinsburg lembra do fim da editora, que depois se transformou na Bertrand Brasil e hoje pertence ao grupo Record. "Monteil era um socialista e praticamente incentivou a greve dos seus funcionários, que acabou no fechamento da Difel". Ele permaneceu na editora até as portas descerem, em 1966, traduzindo e organizando coleções como as de Diderot, mais tarde reeditada duas vezes (a última na Perspectiva).
Guinsburg pretendia criar na Difel a Coleção Debates, por meio da qual a Perspectiva acabou se firmando como a casa dos grande ensaios literários e filosóficos, mas se desentendeu com Monteil e levou o projeto para sua editora recém-formada. "Ela começou como uma sociedade fechada com muitos sócios, entre eles Celso Lafer e José Mindlin, que nos ajudou em muitos momentos de crise, como nos anos 1970, quando quase fomos à bancarrota."
Tudo isso porque a ampla visão editorial de Guinsburg brigava com a empresarial. Um dos primeiros autores da Coleção Debates - dedicada a ensaios fundamentais nas áreas de artes, literatura, filosofia e linguística, entre outras disciplinas - foi Umberto Eco, que, nos anos 1960, ainda não era o autor do best-seller O Nome da Rosa (1980), mas um semiólogo para poucos. Guinsburg foi o primeiro editor brasileiro a publicá-lo na coleção (começando com Obra Aberta, de 1962). Outros grandes nomes da série Debates - Anatol Rosenfeld, Margaret Mead, Roman Jakobson, Martin Buber, Abraham Moles, Gershom Scholem - pertencem ao Olimpo acadêmico, mas não são propriamente campeões de venda. Scholem, amigo de Walter Benjamin, era desconhecido no Brasil antes de Guinsburg publicar livros como De Berlim a Jerusalém. Martin Buber é outro exemplo de autor introduzido aqui graças à Perspectiva. "Porém, os lançamentos de seus livros eram praticamente ignorados pela mídia", lembra o editor, cuja formação foi bastante curiosa.
Sem falar línguas estrangeiras, mas lendo em inglês, francês, espanhol, alemão, hebraico e ídiche, ele decidiu se aprofundar nos estudos filosóficos, iniciados (com a leitura dos materialistas históricos) quando ainda era adolescente. Esse interesse se expandiu quando seu caminho se cruzou com o do crítico Anatol Rosenfeld (1912-1973). O teórico, que na época dirigia a seção de letras germânicas do Suplemento Literário do Estado, deu uma palestra da qual Guinsburg saiu encantado. Ficaram amigos e Rosenlfeld acabou indicando seu nome para dar aulas na Escola de Arte Dramática da USP, criada em 1948 por Alfredo Mesquita. "Frequentei durante 14 anos os cursos de Estética de Rosenfeld, até 1972, um ano antes de sua morte". Foram aulas bem aproveitadas, a julgar pela coleção de Estética de sua editora, que abriga autores como Theodor Adorno e Max Bense.

Se a influência de Rosenfeld foi decisiva na maturidade, na infância foi um professor trotskista que jogou nas mãos do menino Jacó livros de autores esquerdistas. Vindo da Bessarábia com 3 anos, ele frequentava na adolescência o clube judeu Cultura e Progresso no Bom Retiro, depois transformado na Casa do Povo. "Devia ter 12 ou 13 anos quando assisti a uma peça antirreligiosa em plena época das festas judaicas", conta, rindo. Entre descendentes de imigrantes italianos e filhos de soldados da PM ele cresceu, assistindo depois aos clássicos de Shakespeare e lendo o que ele chama de "literatura de combate" (Gorki e outros escritores russos comprometidos com a revolução que derrubaria o czar). Guinsburg poderia ter acabado na política, mas seguiu outro caminho. Ganharam os leitores. A Perspectiva ostenta hoje um catálogo de 1.000 títulos e entra o ano com o projeto de publicar outros 50 até 2013. O editor não pensa em parar. Nem em vender sua editora, comandada por ele e a esposa Guita, com quem é casado há meio século.
TÉVYE, O LEITEIRO
Autor: Scholem Aleikhem
Organização, tradução e notas: Jacó Guinsburg
Ilustrações: Sérgio Kon
Editora: Perspectiva (272 págs., R$ 55)