Isso se por "dar certo" entendermos a formação de
uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu
potencial
Gustavo Ioschpe – da revista VEJA
Empresas - tocadas como escolas iriam à falência (Iconica/ Getty Images) |
Imagine que você trabalha em uma empresa em que os
funcionários não ganham de acordo com sua competência, mas sim segundo seu
tempo de casa e nível de estudo. Não há promoções, mas também só há demissão em
casos de violação grotesca. Mesmo faltando repetidamente ao serviço, não
alcançando sua meta ano após ano e maltratando seu cliente, você continua no
posto até se aposentar. Imagine que não exista, em sua região, universidade que
prepare bem para o seu emprego, de forma que você já chega ao trabalho não
sabendo muito. Pior: tem gente que trabalha em área diferente daquela em que
foi formada; o cara de vendas se formou em letras. Imagine que essa empresa só
tenha dois cargos (funcionário e chefe) e que quase metade dos chefes tenha
chegado ao cargo por indicação de um conhecido dos donos (o restante é
majoritariamente eleito para a posição pelos funcionários). Imagine que os
donos são muitos, que eles não costumam frequentar a empresa e que a herdaram
como parte de um conglomerado, do qual a sua empresa é uma das que agregam
menos valor aos donos. Imagine agora que o serviço prestado pela sua empresa é
complexo e dirigido a crianças e jovens. Imagine também que essas crianças e
seus pais não saibam julgar a qualidade do serviço, mas achem que está tudo
bem, desde que você o empacote em uma embalagem bonita e dê aos clientes alguns
brindes (uns livros, umas roupas, de repente até um laptop aos mais sortudos).
A empresa consegue dar todos esses brindes; a maioria dos clientes está,
portanto, satisfeita. Imagine que os clientes e seus familiares não precisem
pagar diretamente pelo serviço: o pagamento vem da empresa-mãe (a que congrega
todos os negócios do grupo) e é baseado na compra de outros produtos e serviços
oferecidos por outras empresas do grupo.
Agora pense nesse ambiente de trabalho e responda às
seguintes perguntas. Se você trabalhasse nele, estaria motivado a dar o seu
melhor ou pegaria leve, esperando o contracheque no fim do mês? Como você acha
que seus outros colegas de empresa se comportariam? Se lhe dessem um aumento
salarial, você se esforçaria mais? Se você fosse uma pessoa carreirista,
permaneceria nessa empresa? Aliás, você teria entrado nela? No caso dos chefes
indicados pelos amigos dos donos, você acha que eles estariam mais preocupados
em agradar aos clientes ou aos donos e seus amigos? No caso dos chefes eleitos
por você e seus colegas, acha que eles comprariam briga com você para defender
os interesses dos clientes ou virariam seus aliados? Presumindo que os clientes
permanecessem satisfeitos e que continuassem pagando indiretamente pelo
serviço, você acha que os donos se interessariam em reformar a empresa para que
ela servisse melhor sua clientela, desse mais resultados? Ou será que suas
prioridades seriam manter a coisa no estado em que se encontra e devotar suas
energias para os outros braços do conglomerado, os que dão mais retorno?
Não sei qual o grau de sua fé na humanidade nem suas crenças
na natureza humana, mas eu tendo a achar que a empresa acima seria uma
balbúrdia, com profissionais desmotivados e trabalhando abaixo de sua
capacidade, clientes mal atendidos, conchavos entre funcionários e chefes,
donos desinteressados e pouco envolvidos. Eu acho que melhorar o salário dos
funcionários não mudaria o problema. Vou além: enquanto essa estrutura de
incentivos não fosse alterada, qualquer investimento numa empresa assim seria
um desperdício de tempo e dinheiro. Aliás, não é uma opinião, até porque esse
cenário não é hipotético nem trata de empresas. O quadro descrito retrata a
maioria das escolas públicas brasileiras. Os funcionários são os professores,
os chefes são os diretores de escola, os donos são a classe política, os
clientes são os alunos. O resto não carece de alterações para chegar à
realidade.
O desafio é vencer as adversidades - Washington Alves/AE |
Aposto que você sabe que nossa educação é péssima e que esse
problema é fatal para nossas possibilidades de desenvolvimento. Aposto também
que você acha que esse problema não o afeta, especialmente se você põe seu
filho em escola particular. Aposto que gasta mais tempo na seção de esportes do
seu jornal do que naquela que cuida de educação. Se é que o seu jornal tem uma
seção devotada ao assunto, já que 90% da cobertura do tema se limita a notícias
sobre greves, ameaças de greve e outras reclamações salariais. E, até porque o
assunto é apenas esse — dinheiro —, você acha (acha não: você tem certeza,
depois de vinte ou trinta anos de leituras sobre o assunto) que o principal
problema da educação brasileira é o salário dos professores. Aposto também que,
dois parágrafos antes, você respondeu que aumentar o salário dos funcionários
não resolveria nada, e aposto também que você gosta dos brindes (se você for
mais pobre, merenda; se mais rico, lousa eletrônica ou currículo bilíngue) que
a escola do seu filho dá.
Antes que os patrulheiros se arvorem, não estou querendo
comparar a escola a uma empresa. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Apenas propus um exercício mental. O que espero que esse exercício tenha deixado
claro é o seguinte: não é que a educação brasileira fracassa misteriosamente
apesar dos melhores esforços de todos os envolvidos. Ela fracassa porque esse
arranjo institucional requer a irracionalidade de todos os envolvidos, do
prefeito ao professor. Nossa escola não é feita para dar certo — se por
"dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades
mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial.
O professor apaixonado - supera deficiências
Não faz sentido para um professor brasileiro comprar a
briga: com má formação, precisaria de um esforço hercúleo para obter grandes
resultados. Mas esses resultados não lhe trariam reconhecimento, promoções,
prêmios ou aumentos. Não faz sentido para o aluno brasileiro se esforçar: a
aula que ele recebe é extremamente chata, a maioria dos professores não está
muito preocupada com o seu aprendizado, e ele sabe que, se fizer um esforço
mínimo, vai continuar sendo aprovado, mesmo sem aprender bulhufas. Não faz
sentido para o diretor de escola se insurgir contra essa situação e querer
mudar radicalmente o status quo. Se a sua nomeação depende de eleição dos
professores, ele não vai querer exigir de seus eleitores mais trabalho e
dedicação, até por não ter nada a lhes oferecer em troca. Se o diretor tiver
indicação política, então, Deus o livre de qualquer incômodo: o importante é
dar vida fácil a todos, carregar nos "brindes" e deixar os eleitores
do seu padrinho político felizes. Não faz sentido para os pais dos alunos
protestar contra o atual estado de coisas, porque a maioria deles está
satisfeita com a educação que o filho recebe (em pesquisa recente do Inep, a
nota média dada pelos pais de alunos da escola pública à qualidade da educação
do filho foi 8,6!). E a maioria está satisfeita porque não tem condições
intelectuais de avaliar o que é uma boa educação, pois é semiletrada, e nem
sabe que existem avaliações oficiais sobre a qualidade do ensino do filho.
Finalmente, não faz sentido para o político trabalhar para melhorar a qualidade
do ensino: não há pressão por parte de alunos nem de seus pais, e há uma enorme
resistência a qualquer mudança por parte dos sindicatos de professores e
funcionários. Politicamente, só há custos, sem
benefícios. Nenhum político racional mexe nesse vespeiro. Há, é claro, as exceções. O professor apaixonado pelo que faz, que dá duro independentemente do salário, da carreira desanimadora, dos alunos desmotivados e dos colegas que o pressionam para se aquietar. O diretor comprometido, que se orgulha de fazer uma grande escola e seleciona profissionais que comprem essa batalha. Os alunos e seus pais que querem melhorar de vida e sabem que precisam de educação de qualidade, que lutam contra a pasmaceira. E os políticos comprometidos com a próxima geração, e não com a próxima eleição. Mas esses são minoria, e o sistema está contra eles. Enquanto a lógica do sistema não for alterada, todas as ações pontuais para melhorá-lo — da lousa eletrônica ao salário mais alto — provavelmente irão para o ralo. Acredito que o quadro só mudará quando a população passar a ver a educação brasileira como ela realmente é. Somente aí poderemos esperar a pressão popular por uma educação de qualidade, que gerará incentivo para que políticos cobrem desempenho dos funcionários do sistema. Ou seja, o problema é seu. Está esperando o que para fazer alguma coisa?