Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista. O fundador do Clube de Viajologia visitou 138 países. Esta foi sua 24ª viagem ao Peru |
Fortaleza inca no alto dos
Andes Eleita uma das Sete Novas Maravilhas do Mundo, a cidadela inca continua a
surpreender visitantes - mas seu estado de conservação demanda cuidados
Texto e fotos: Haroldo
Castro – da Revista PLANETA – edição 432.
Machu Picchu é o maior tesouro
que os incas deixaram ao Peru moderno. O lugar rende mais riquezas do que ouro
que os conquistadores derreteram e levaram para a Espanha. Por ano, o santuário
histórico movimenta cerca de US$ 150 milhões e recebe 500 mil visitantes!
Pode parecer clichê, mas o
lugar é mesmo espetacular. Já estive oito vezes em Machu Picchu e nunca senti
que havia perdido a viagem. Sempre encontro algo diferente. Entretanto, chegar
de trem e de ônibus apinhado de turistas – como fazem 90% dos visitantes – é,
no mínimo, banal. Por isso, dessa vez, preferi suar um pouco e conquistar Machu
Picchu a pé!
Havia uma vasta rede de
caminhos por todo o território inca. Várias trilhas ainda existem e uma delas
leva até Machu Picchu. Junto a outros andarilhos, desço do trem no km 104.
Atravessamos o caudaloso rio Urubamba e damos início a nossa jornada a 2.150
metros de altitude, nas ruínas de Chachabamba.
A chamada Trilha Inca atravessa
montanhas, vales e até florestas. Seus 35 quilômetros são percorridos em quatro
dias. Mas a opção que escolhi é o caminho de apenas um dia, uma alternativa à
trilha completa. Mesmo assim, são sete quilômetros de encostas para chegar às
ruínas de Wiñay Wayna e mais outros seis quilômetros até Machu Picchu.
Wiñay Wayna significa em
quéchua “sempre jovem”. A 500 metros de altitude acima do rio Urubamba, é a
etapa de descanso antes de chegar a Machu Picchu. Nesse ponto, nosso caminho
junta-se com a trilha de quatro dias. Aqueles que atingiram Wiñay Wayna
percorreram três dias de sobe-e-desce. Cruzaram montanhas, venceram
desfiladeiros e passaram pelo ponto mais alto da trilha, Warmiwañusca, a 4.200
metros.
Percorri a Trilha Inca completa
de quatro dias em 1978. Na época, não existia nenhuma infra-estrutura ou
segurança. Apenas os mais atrevidos ousavam encarar as subidas e descidas
íngremes. Com as décadas, o caminho tornou-se tão popular que milhares de
pessoas passaram a usar a trilha. O impacto dessa massa de caminhantes foi
violento. Toneladas de lixo foram deixadas pelos turistas. O movimento provocou
erosão em alguns trechos e ameaçou a integridade de várias ruínas
arqueológicas.
O governo peruano precisou
intervir e impor restrições. Agora é necessário ter uma autorização para
percorrer o caminho e, no mínimo, US$ 400 para cobrir os gastos. Quinhentas pessoas,
incluindo as equipes de apoio, podem iniciar o caminho a cada dia. E, para
poder estar entre os escolhidos, é necessário reservar lugar com três meses de
antecedência.
O momento culminante da Trilha
Inca é a chegada em Inti Punku, a Porta do Sol, entrada original de Machu
Picchu. Acredita-se que esse acesso não era uma via comercial, mas um percurso
cerimonial. Era considerado uma peregrinação, onde cada etapa incluía rituais,
inclusive para os Ápus, as montanhas sagradas.
Depois de mais de seis horas de
caminhada, a nossa recompensa é uma visão grandiosa. Dá para entender o impacto
que Machu Picchu produz nas pessoas. O lugar impõe respeito e admiração. A
paisagem transmite a força da natureza. O ambiente transporta as pessoas a um
outro espaço e tempo.
Mas, afinal, o que teria sido
Machu Picchu? Apenas uma fortaleza, como dizem alguns arqueólogos? Mas para
proteger o que e de quem? Isolada pelas correntezas do rio Urubamba, que passa
a seus pés, e por um anel de picos montanhosos, Machu Picchu não tem as
características de uma fortaleza clássica ou de um centro administrativo. Mais
lógico seria conceber a cidadela como um refúgio espiritual – ou até mesmo um
esconderijo político.
A cidade é uma obra
auto-sustentável, com plataformas agrícolas e edificações talhadas na própria
montanha. Todo material utilizado na construção veio das redondezas. As
estruturas são de granito; os muros ligeiramente inclinados compensam o impacto
de possíveis terremotos. Formam um conjunto arquitetônico de alto valor estético.
No total, são 150 casas, além de palácios, templos e aquedutos. Tudo muito bem
preservado.
Os vestígios arqueológicos de
Machu Picchu confirmam que a maioria das edificações data do início do século
15, bem antes da chegada dos conquistadores. A cidade continuou habitada até 40
anos depois da tomada de Cuzco.
Os espanhóis jamais conheceram
Machu Picchu. Foi o explorador norte-americano Hiram Bingham que descobriu as
ruínas, em 1911. Quando ele chegou a Machu Picchu, a cidade estava escondida,
recoberta por 400 anos de vegetação. Depois de dois anos de exploração
arqueológica, patrocinada pela Universidade de Yale e pela National Geographic,
Bingham voltou aos Estados Unidos com mais de 5 mil artefatos. A maioria deles
continua nos depósitos do museu da universidade. Hoje, o governo peruano e Yale
discutem sobre o retorno dessas peças para que sejam expostas em um museu
local. Bingham nunca teria imaginado que, um século depois da descoberta, a
antiga cidade seria uma das Sete Novas Maravilhas do Mundo.
O explorador não encontrou
nenhum objeto que poderia ser considerado como tesouro. Não foi descoberta
nenhuma cerâmica espetacular ou qualquer objeto de ouro ou de prata. Apenas
algumas peças de bronze e de uso diário. Na verdade, o “tesouro” mais
extraordinário de Machu Picchu é sua localização natural, cercada de montanhas
e florestas. É esse entorno, esse ambiente mágico, que faz com que visitantes
de todas as partes do mundo sejam atraídos por Machu Picchu.
Pela sua localização, Machu
Picchu parece estar sempre brincando com as nuvens. Até mesmo na época seca, quando
o sol deveria brilhar sozinho no céu, nuvens de chuva podem se formar a
qualquer momento. É essa água que dá vida à vegetação das encostas das
montanhas.
Com 32 mil hectares, o
Santuário Histórico de Machu Picchu concentra uma grande biodiversidade. Isso
acontece porque ele abrange dez diferentes zonas ecológicas, com altitudes que
variam de 1.700 metros, no rio Urubamba, a mais de 6.200 metros de altitude,
com o pico nevado Salcantay.
Apenas um terço do Santuário
foi explorado por biólogos. Mas já se sabe que a flora é rica e variada, com
uma grande quantidade de arbustos, samambaias e trepadeiras. Foram
identificadas cerca de 300 espécies de orquídeas e existem dezenas de espécies
de bromélias, cada uma adaptada a uma diferente altitude. Uma begônia rosa é
nativa da região.
Machu Picchu foi construída de
acordo com a magia da natureza. O Templo das Três Janelas é uma prova, pois marca
as quatro estações do ano. Nos dias de equinócio da primavera e do outono, o
sol nasce na janela do centro. Nos solstícios do inverno e do verão, aparece na
janela das pontas.
Esse conhecimento dos
mzovimentos dos astros parece ter sido uma marca registrada da cultura inca.
Não é apenas o Templo das Três Janelas que marca a passagem das estações. O
Intihuatana, o coração do centro cerimonial de Machu Picchu, também dá essa
informação. Inti (“sol”, em quéchua) e Huatana (da palavra Huata, “amarrar”)
significaria “lugar onde se amarra o sol”.
Esse pedaço de granito,
esculpido em uma forma bem particular, era utilizado como instrumento para
medir o ciclo do tempo e das estações do ano. São as sombras projetadas pela
pedra – ou a ausência delas – que dão a informação necessária. Esse calendário
natural teria uma função importante para organizar a vida social, agrícola e
religiosa dos incas. Assim, Machu Picchu poderia ter sido também um
observatório astronômico.
Mas a principal função do
Intihuatana não está descrita em textos arqueológicos. A tradição andina
atribui ao aparelho solar o poder de captar a energia do sol, permitindo uma
maior visão espiritual do iniciado. Pedras como o Intihuatana eram sagradas
para os incas e existiam em todo o território. Por essa razão, foram alvo de
destruição sistemática pelos espanhóis. Os conquistadores entendiam que, ao
arrasar as pedras sagradas, estariam também desconectando os incas de seus
deuses.
Como não foi descoberto pelo
conquistador, o Intihuatana de Machu Picchu foi poupado. Porém, em setembro de
2000, um triste acidente, durante a gravação de um comercial de cerveja,
danificou o que os espanhóis não haviam conseguido. Um equipamento pesado caiu
em cima da ponta do Intihuatana, fraturando oito centímetros da pedra sagrada.
Na verdade, o estado de
conservação do santuário é delicado. Machu Picchu, considerado Patrimônio
Mundial Natural e Cultural desde 1983, tomou um cartão amarelo da Unesco no ano
passado. O órgão das Nações Unidas, que trata da área cultural, científica e
educacional, vem demonstrando sua crescente preocupação com o impacto provocado
pelo turismo de massa. A última missão da Unesco concluiu que Machu Picchu tem
problemas sérios de desmatamento, desenvolvimento urbano desenfreado e acesso
ilegal, além de correr graves riscos de deslizamento de terra.
A esperança é que o Instituto
Nacional de Cultura e outras instituições peruanas envolvidas na região saibam
ouvir as advertências da Unesco e passem a administrar Machu Picchu com uma
visão integrada e não apenas como uma fonte inesgotável de renda.