Do mosteiro ao picadeiro
FRANCESCA ANGIOLILLO – de Milão
para o ILUSTRÍSSIMA, da FOLHA DE SÃO PAULO.
Humberto Eco |
"Todas as perguntas
possíveis já me foram feitas", diz Umberto Eco, após terminar o café,
afundado numa poltrona da sala de visitas de sua casa, em Milão. A cigarrilha
apagada, hábito de ex-fumante, pende de um lado da boca. "Só não me perguntam,
sei lá, quais são os sete anões. Eu responderia que, quando tento me lembrar,
sempre são seis." Ao fundo, atrás de sua calva, vê-se, de um lado, uma
coleção de conchas do mar, escrupulosamente organizadas; de outro, em atris,
livros ilustrados do fim do século 19. São alguns dos originais de onde saíram
as ilustrações de seu mais recente romance, "O Cemitério de Praga"
[Record, trad. Joana Angélica D'Avila Melo, 480 págs, R$ 49,90]. O
"Cemitério" foi recebido como a volta de um mestre ao gênero que o
consagrou (após um romance nostálgico e de fundo autobiográfico, "A
Misteriosa Chama da Rainha Loana"): uma trama de mistério, com crimes
sangrentos e um protagonista que chega a ser comovente em sua pusilanimidade. A
entrevista tem por mote o lançamento do livro no Brasil mas também os 80 anos
do escritor, nascido em 5 de janeiro de 1932, na piemontesa Alessandria, cuja
fama vem dele e dos chapéus Borsalino. Em várias fotos para a imprensa, ele
ostenta, com elegância algo zombeteira, um modelo negro da marca.
ROMANCE
Eco, o romancista, nasceu em
1980, após sobrevir-lhe o desejo de envenenar um monge: assim o escritor define
o motor inicial de seu "O Nome da Rosa", best-seller de cifras
milionárias, levado ao cinema em 1986 por Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery
e Christian Slater. Àquela altura, o nome do professor italiano era já
conhecido: foram muitos ensaios e títulos de teoria, da poética do escritor
irlandês James Joyce ("Sou joyciano, não proustiano", diz, e exibe
uma estante forrada de primeiras edições de "Ulysses" em diferentes
idiomas) a análises da comunicação de massa (seu primeiro emprego
pós-doutoramento em filosofia, em 1954, foi como editor de cultura num dos
canais da rede televisiva RAI). O manual "Como se Faz uma Tese"
(Perspectiva), de 1977, ainda hoje é referência em cursos de ciências humanas.
Mas o currículo de Eco faz com que ele frequente as bibliografias de muitas
disciplinas que não só as de metodologia. Umberto Eco navegou nas principais
ondas que atravessaram os estudos da linguagem na segunda metade do século 20,
do estruturalismo à teoria da recepção e à narratologia, parando às margens do
pós-estruturalismo; cobriu da filosofia às tirinhas do Snoopy. Cunhou
expressões que se tornaram muletas do discurso universitário: atire a primeira
pedra quem nunca disse que toda obra é "uma obra aberta" ou aquele
que não juntou numa frase, dita à mesa do bar, "apocalípticos" e
"integrados". Foi a ficção, porém, que levou seu nome aos píncaros da
cultura de massa. No Brasil, "O Nome da Rosa" saiu em 1984 pela Nova
Fronteira. A diretora editorial da casa, Leila Name, qualifica o livro como
"uma bomba de sucesso" cujo efeito se multiplicou com o filme. Pelos
registros da Nova Fronteira, a primeira investida de Eco na ficção teve no Brasil
mais de 45 reimpressões e vendas acima de 600 mil exemplares. Hoje, sua obra
ficcional está toda na Record, que também lança alguns de seus livros de
ensaios, como "A História da Beleza" e "A História da
Feiura", almanaques eruditos de popularização da história cultural.
Somados, seus títulos na casa venderam cerca de 550 mil exemplares
""91 mil deles de "O Cemitério de Praga". Sergio Machado,
presidente do Grupo Editorial Record, lembra a aquisição de "O Pêndulo de
Foucault", segundo romance de Eco, em um leilão "via fax, telex"
comandado por seu pai, Alfredo Machado nos idos de 1988. A quantia acertada
pelos direitos do segundo romance de Eco era uma cifra "inédita", US$
130 mil (cerca de US$ 237 mil, em números corrigidos, o equivalente a R$ 420
mil). "Na época, US$ 20 mil eram um absurdo", situa Machado. O editor
se esquiva de fornecer valores atuais, mas diz que a soma paga por um livro de
Eco "não anda para trás" e "vem subindo de forma
consistente". Dali em diante, tudo o que Eco escreveu atingiu números
superlativos --inclusive o que menos vendeu na Record, "A Misteriosa Chama
da Rainha Loana", com "apenas" 48 mil exemplares. "Este foi
um pelo qual a gente pagou mais do que devia", diz o editor. "As
pessoas querem mais do mesmo." Eco não discorda. "Todos falam que
escrevo romances eruditos, difíceis", diz o escritor. "Quando escrevi
um fácil, que todo mundo entende, 'A Misteriosa Chama da Rainha Loana', foi o
que menos vendeu. Dá para ver que sou um autor para masoquistas."
DAN BROWN
O Nome da Rosa no cinema |
Muitos intelectuais, porém, não
engolem a combinação de sucesso comercial e erudição de Eco, tachando-o de uma
espécie de Dan Brown mais cultivado. O raciocínio é um velho conhecido no
Brasil, onde serve para desqualificar, por exemplo, os romances de Chico
Buarque: se o autor vende bem e é pop, mau sinal --só pode ser um picareta. "Ter
Umberto Eco nas estantes da sala é, para muitos, inclusive os que jamais leram
uma linha desses livros, uma questão de 'status cult'", diz a professora
Lucia Santaella, da PUC-SP, colega em semiótica de Eco, a quem tece
"críticas até mesmo bastante severas". Para ela, o italiano é uma
espécie de grife, que "compõe bem a pose dos pseudointelectuais que
brilham nas grandes praças dos lançamentos do 'big show business'". Um de
seus detratores contumazes na Itália, o romano Alfonso Berardinelli, estrela da
crítica italiana atual, diz --citando Kafka-- que Eco está no centro do mundo,
onde se acumula toda a sua imundície, "a prodigiosa escória". "Escrevi
pelo menos quatro ou cinco artigos e ensaios contra Eco", rememora à
Folha. "Não posso dizer nada de novo; Eco me aborrece faz tempo, e o que
eu tinha a dizer já disse há 20 ou 30 anos. Fico maravilhado em ver como
agrada", afirma o autor de "Da Poesia à Prosa" (Cosac Naify). "Parece
engraçado e brilhante, mas na realidade é um professor que não cessa de mesclar
erudição e piadas com veia estudantil. E sem fazer rir. É quase uma ofensa à
literatura italiana que ele seja seu autor mais notável." Berardinelli diz
ainda não conhecer nenhum escritor --"nem na Itália, nem fora"-- que
goste mesmo de Eco. "Sua fama é puramente comercial. É um fenômeno de
circo, um autor que impressiona professores de escola."
PICADEIRO
No meio do picadeiro
pós-lançamento, Eco segue imperturbável: profere pausadamente um discurso que
soa familiar, pois volta e meia as palavras se repetem em manifestações
públicas e entrevistas. Pudera: a vida literária muitas vezes rivaliza com a de
um roqueiro, com cansativas turnês de lançamentos ("Voltei dos EUA com o
ombro arruinado, depois de autografar 3.000 livros", conta) e solicitações
para opinar publicamente sobre todo e qualquer fato relevante (menos sobre os
sete anões). Seu apartamento é uma grande biblioteca --são 30 mil volumes;
outros 20 mil, estima, estão em sua casa de campo--, mas nada de labirintos
compartimentados, apesar de o edifício ser um antigo hotel. À entrada, mapas
antigos recebem o visitante; a sala é luminosa e ordenada, com móveis discretos
e claros; nas paredes, arte contemporânea; pela janela vê-se a torre do castelo
Sforzesco, famoso marco turístico milanês. A antiga residência dos duques de
Milão remonta à Idade Média, período dileto de Eco, que se doutorou pela
Universidade de Turim em 1954 com uma tese sobre a questão estética em São
Tomás de Aquino. Mas da fortaleza que foi, após múltiplos ataques e sucessivas
reconstruções, praticamente nada de original resta. "Os turistas vêm aqui
ver o castelo, onde é tudo falso, e não vão a Brera, onde tem Rafaello, o
Cristo de Mantegna, Piero Della Francesca", lamenta o escritor.
FALSÁRIO
O falso e o verdadeiro são um
tópico da obra de Eco. Simone Simonini, o protagonista de "O Cemitério de
Praga", é um falsário. Ou melhor, "o" falsário: Eco atribuiu a
ele os grandes crimes contra a verdade que marcariam a virada para o século 20
e, mais que todos, os apócrifos "Protocolos dos Sábios de Sião",
conjunto de escritos antissemitas que teriam servido a Hitler para a
fundamentação do nazismo. "Havendo-me ocupado de problemas de linguagem e
comunicação desde 1975, escrevi que o que caracteriza toda forma de signo e de
linguagem humana é a possibilidade de mentir. Um cão não mente jamais. Quando
late, é porque tem alguém lá fora: nunca aconteceu de um cão latir para que se
pense que há alguém lá fora, sem que haja --o homem sim." "O problema
da mentira implica o problema da falsificação. Entre as falsificações mais
trágicas, eis os 'Protocolos dos Sábios de Sião', aos quais dediquei vários
escritos. Acho que fiz também algumas descobertas ""como a de que
trata o romance, que uma das fontes era 'Joseph Balsamo', o livro de
Dumas." O romance de Alexandre Dumas, pai, de 1849, se inicia com uma cena
em que maçons entronizam o protagonista em sua seita secreta. A descrição teria
inspirado a conspiração de rabinos dos "Protocolos", forjada no
cemitério judaico da capital tcheca, que se teriam congregado para tramar a
dominação do mundo. O "documento" (que difama os semitas "num
patchwork contraditório que não se poderia levar a sério, mas que foi muito
levado a sério") justificaria o ódio aos judeus e seu extermínio
preventivo. "Ninguém sabe como surgem os 'Protocolos': como nasceram, quem
os fez, em quantas fases. Por isso fiquei livre para atribuir tudo a
Simonini", diz. E explica que Simonini é o único personagem fictício no
romance, um "feuilleton" oitocentista. Ele frisa, porém que,
Simonini, apesar de inventado, "é mais verdadeiro que os demais". "Eu
estava sempre pensando em pessoas que conhecemos, falsários, jornalistas
vendidos, que sabemos quem são, até o nome e o sobrenome. Minha ambição seria
que os leitores usassem o livro como um guia para visitar o mundo dizendo 'lá
vai um Simonini'." Eco arrisca uma leitura psicológica das motivações para
a obsessão central de Simonini, que é o ódio aos judeus fomentado nele pelo avô
desde a infância. "Descobri que algumas pessoas acabam odiando alguém
porque lhe fizeram mal ""veja bem, não odeio alguém porque alguém me
fez mal, mas porque eu lhe fiz mal e depois o odeio. Mas por quê? Porque tento
esquecer que eu sou o culpado e tento me convencer de que ele merecia meu
ódio." E garante: "Aconteceu comigo também: gente que aprontou comigo
depois escreveu artigos contra mim. Mas entendi que tinham sido desrespeitosos
comigo e depois precisavam se justificar". Como reza o título da mais
recente coletânea de ensaios de Eco --o ainda inédito em português
"Costruire il Nemico" (2011), no qual se reconhecem temas e aspectos
de "O Cemitério de Praga": é preciso construir o inimigo.
CRÍTICA
Eco diz "desconfiar muito
da chamada crítica militante, a que se faz nos jornais, em comparação com a
crítica acadêmica". "Antes, quando saía um livro, o diretor do jornal
dava seis meses ao crítico para ler; não havia necessidade de falar dele no dia
seguinte. Hoje o crítico lê sempre numa situação de pressa e fica sujeito à
estação, à dor de cabeça, ao que comeu na noite anterior. Se tivesse tido seis
meses, comendo cada dia algo diferente, a sua leitura seria mais
equilibrada." E, como que a precaver-se de um ataque, emenda:
"Note-se que eu acho desequilibradas não só as críticas que falam mal de
meus livros mas também as que falam bem; elas às vezes me irritam porque falam
bem pelos motivos errados." Ele se irrita, também, quando inquirido se
existem de fato "motivos errados". Parece condenado a relembrar que a
obra é aberta, sim, mas que a interpretação tem limites: "A minha posição
é muito clara: não sou um desconstrutivista que acha que um texto pode ter
qualquer significado e que cada um pode ler como quiser. A liberdade da leitura
é sempre determinada pelo objeto que está lá."
SEMIÓTICA
Se a semiótica foi devorada por
outros estudos e devolvida sob outros avatares acadêmicos, a culpa é em parte
de Eco. Com rara clareza numa ciência em que a obscuridade volta e meia era
confundida com argúcia, o italiano aplicou conceitos da ciência dos signos em
estudos amplamente difundidos e citados (mesmo que muitas vezes de orelhada)
fora do âmbito dos semioticistas, alastrando-os para campos mais diversos e
talvez menos cerebrais. Sempre evocada quando se pensa em semiótica, sua
produção, porém, não empolga seus pares. Para Lucia Santaella, o pensamento que
ele produziu é "miscigenado": "Ele mistura indiscriminadamente
correntes, autores, teorias, criando uma salada complexa e difícil de
entender." A professora não nega a Eco o papel de "intelectual
engajado", que, "alerta, marca sua posição acerca dos eventos",
"como um jornalista bem dotado". "Ele é escritor prolífico. Nos
inúmeros congressos de que participei em que ele estava presente, comentava-se
que ele escrevia até nos táxis. De fato, ele tem a veia dos gênios. Sua genialidade
é a do discurso", concede Santaella.
PARÓDIA
Alfonso Berardinelli |
O discurso de Eco tem um
aspecto brincalhão que parece atiçar parte da crítica contra ele e marca, por
exemplo, seus dois "Diários Mínimos", divertidas coletâneas de
paródias e pastiches intelectuais, que em maio ganham nova edição [Record,
trad. Joana Angélica D'Avila Melo e Sergio Duarte, 560 págs., R$ 62,90; leia
trecho de "Nonita" à pág. 10]. A despeito do lado gracioso, Eco tem
para sua literatura pretensões nada triviais. Seus diversos ensaios sobre a
leitura, como "O Papel do Leitor", e livros sobre o tema, como
"A Obra Aberta" e "Lector in Fabula", talvez sejam o
retrato do que o Eco ensaísta esperava do Eco romancista: a forja, no mundo
real, de um leitor modelo. "Que leitor modelo eu queria quando estava
escrevendo?", inquire retoricamente Eco em seu "Pós-escrito a 'O Nome
da Rosa'" (Nova Fronteira, 1985). "Um cúmplice, claro, que entrasse
no meu jogo. Eu queria tornar-me completamente medieval e viver na Idade Média
como se esta fosse minha época (e vice-versa)", escreve. "Mas, ao
mesmo tempo, eu queria, com todas as minhas forças, que se desenhasse uma
figura de leitor que, superada a iniciação, se tornasse meu prisioneiro, ou
melhor, prisioneiro do texto e pensasse não querer nada mais do que aquilo que
o texto lhe oferecia." Questionado se o teórico transparece no romancista,
ele nega. Diz que, se é que se encontram reflexos de sua teoria na sua ficção,
é "porque evidentemente eu não sou esquizofrênico": "Até os
ginecologistas se apaixonam. Sustento que você pode ter a teoria que for, mas,
quando lê, se aquilo o cativa, ao menos numa primeira fase da leitura esquece a
teoria." Berardinelli, seu crítico mais feroz, faz uma descrição tão ácida
quanto acertada do que é tentar definir a produção de Eco. Assim diz, no texto "Umberto
Eco e Seu Pêndulo", publicado aqui em edição da revista "Remate de
Males" organizada pela professora Maria Betânia Amoroso no primeiro
semestre de 2005: "Toda vez que se cai na armadilha de seguir
enumerativamente a vertiginosa pluralidade da mente de Eco, se acaba por ter
que desistir derrotado: estamos frente ao inesgotável [...]. Se eu também me
pusesse a enumerar tudo aquilo que ele enumera não faria nada mais do que lhe
fazer eco."