LUCAS FERRAZ – Enviado especial
ao Uruguai – da FOLHA DE SÃO PAULO, caderno Ilustríssima.
Para demarcar os limites de sua
imaginação, Henry Engler traça um círculo que abriga e controla seus
pensamentos.
Henry Engler |
Foi assim na prisão, onde ele
desenvolveu a técnica intuitivamente, para tentar manter-se são; na vida
cotidiana, como na recente briga de trânsito em que terminou agredido; e no
trabalho de pesquisa médica, que o fez chegar perto do Prêmio Nobel de
Medicina, por desenvolver um dos estudos mais importantes em sua área nos
últimos cem anos. Ex-preso político da ditadura uruguaia por 13 anos, 11 dos
quais numa solitária, sofrendo alucinações e diagnosticado com psicose
delirante crônica, Engler apresentou em 2002, na Conferência Mundial sobre o
Alzheimer, em Estocolmo, um trabalho que revolucionou os estudos do cérebro. Ele
detectou, pela primeira vez, a proteína amiloide, associada ao Alzheimer, em um
homem vivo, passo mais importante no estudo da doença desde que o psiquiatra
alemão Alois Alzheimer (1864-1915) detectou o mal, em 1906, na cabeça de um
morto. "Claro que houve influência da prisão na minha investigação, ela me
deu disciplina e muita paciência", disse Engler à Folha em sua sala de
diretor do Cudim (Centro Uruguaio de Imagenologia Molecular), criado por ele em
Montevidéu em 2008. "Para o pesquisador, o mais importante não é a
inteligência, mas sim a paciência, em primeiro lugar, e depois a intuição.
Tanto na prisão como na minha pesquisa, tomei um caminho intuitivo."
PRISÃO
Ex-dirigente Tupamaro, a maior
organização da esquerda armada do Uruguai entre os anos 1960 e 70, Engler foi
um dos nove reféns da ditadura instaurada em 1973. Os militares prenderam nove
dirigentes e ameaçaram executá-los caso a organização retomasse as ações
armadas. Além de Engler, o atual presidente uruguaio, José Pepe Mujica, e o líder
e fundador dos Tupamaros, Raúl Sendic, estavam no grupo. Nascido em Paisandú em
1946, Engler era estudante de medicina e um dos dirigentes da organização.
Participou de ações armadas e foi acusado pelos militares de ser um dos
coautores do assassinato de Dan Anthony Mitrione, agente da CIA executado no
Uruguai em 1970. Ele nega. Foi preso em 1972, aos 24 anos. No ano seguinte,
acabou trancafiado em uma solitária onde viveria os próximos 11 anos. "Tinha
muito problema com as vozes. Nunca vi coisas inexistentes, mas eu tinha uma
toalha que se transformava em tapete mágico, cheia de sinais", conta.
"Era insuportável ouvir as vozes, era muito agressivo, sentia fisicamente
choques elétricos que paravam meu coração, que me seguiam torturando. Sofri
isso durante anos." Uma das piores alucinações foi a constatação de que a
CIA tinha instalado um dispositivo em seu cérebro. Ao pensar nos companheiros
da luta armada, automaticamente o dispositivo da agência de inteligência
norte-americana captava a identidade dos colegas, que "caíam" (eram
presos) em seguida. Para ele era a morte. "Foi tudo intuitivo. Para
controlar meus pensamentos, tratava de fazer um ponto na parede da cela e
olhava fixamente para ele", conta. "Em pouco mais de um mês, via o
que passava na minha cabeça, imagens que iam se formando. Até que fiz um
círculo, e sempre tratava de manter essas imagens e pensamentos dentro do
círculo. Seguia escutando vozes, mas agora eu podia controlar minha
cabeça."
LIBERDADE
As alucinações só terminaram em
1984, quando deixou a solitária. Ganhou a liberdade no ano seguinte, já com
leve melhora psicológica. Eram tempos de redemocratização no Uruguai. O círculo
mudou a maneira de Henry Engler pensar. Aos 65 anos, ele diz ter desenvolvido
uma capacidade de não reagir imediatamente a nada. Engler é calmo, ouve o
interlocutor com muita atenção e não perde a piada. "Trato de ver o que
passa em meu pensamento e o que está passando no do outro. Controlar os
pensamentos muda a forma como o cérebro trabalha, você perde a rapidez de
reagir irracionalmente. Sempre está vendo o que está pensando, isso é correto,
isso não é. A prisão me ajudou a desenvolver parte disso, não podia logicamente
pensar no que ia acontecer comigo. Nos momentos de perigo, quando pensava que
ia ser morto, precisava muito da intuição. O cérebro vai aprendendo a funcionar
de uma maneira mais efetiva, que não é lógica". Na prisão, abandonou o
materialismo histórico dos tempos de militância e passou a crer em Deus
-segundo diz, para sobreviver. Primeiro pensou em Che Guevara. "Che podia
suportar tudo, mas comecei a pensar em uma pessoa que poderia suportar mais, e
era Jesus. Comecei a pensar que era bom parecer com Jesus. 'Perdoai, Senhor,
eles não sabem o que fazem'. Isso despertou minha admiração. Estive muito
alterado mentalmente, e tive uma identificação com Messias, mas depois me dei
conta que não seria nenhum Messias, já tinha encontrado Deus". Ao sair da
prisão, Engler se mudou para a Suécia, país que recebeu muitos exilados
latino-americanos. Decidiu retomar os estudos de medicina, mas a Universidade
de Uppsala não aceitou os antigos registros do Uruguai. Recomeçou o curso em
1988, aos 42 anos. Por causa da idade, que ele considerava avançada para atuar
como cirurgião, optou por seguir a carreira de pesquisador. "Comecei a
trabalhar na universidade, onde havia cientistas de primeira linha. O método
não era muito conhecido, mas tive a sorte de entender que era importante para o
futuro. A carreira de pesquisador é longa, é como o trabalho para desenvolver o
olfato dos cães que procuram drogas: você começa a farejar para encontrar a
solução dos problemas."
ALZHEIMER
Em 1997, já integrado à equipe
de investigação de Uppsala, Henry Engler participou de pesquisas com cientistas
da Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia. Nos Estados Unidos, os
pesquisadores conseguiram criar uma substância que era usada em animais. Os
estudos com o composto "PiB", como os suecos o nomearam, foram
bem-sucedidos. Monitorada até chegar ao cérebro, a substância tornou possível
detectar a proteína amiloide, associada à doença de Alzheimer. Na Suécia, a
Universidade de Uppsala desenvolveu um avançado exame de imagem, e Engler e
seus colegas testaram o "PiB" em homens. "Colocamos uma pequena
quantidade de radioatividade nessa substância, a injetamos no corpo humano e a
monitoramos até o cérebro. Com as câmeras especiais, foi possível detectar a
reação da amiloide, substância do cérebro que produz a doença e vai matando os
neurônios". O teste foi feito com cinco pessoas saudáveis e nove doentes.
Deu certo. Era a primeira vez na história que a medicina conseguia mostrar a
presença do Alzheimer no cérebro de pessoas vivas.
ACERTO DE CONTAS
Dividindo o tempo atualmente
entre a Suécia e o Uruguai, Engler voltou ao seu país para um pequeno acerto de
contas. Em 2008, fez um acordo com o governo para a criação do Cudim, erguido
em frente ao mítico estádio Centenário. O centro médico é uma organização que
atua em regime privado, mas que depende do Estado. "Damos assistência a
toda a população do Uruguai, sem cobrar nada, porque o Estado nos deu essa
oportunidade", afirma. No Cudim, há uma parceria com as Universidades de
Montevidéu e de Uppsala. Os exames são para diagnósticos de câncer (todos os
tipos), além de neurologia. O diagnóstico do Alzheimer deve começar a ser feito
em breve. "Senti uma obrigação de ajudar, de voltar, o Uruguai estava
muito distante nessa área. Senti muita gratidão pelas pessoas que lutaram pelo
fim da ditadura e pela minha geração". Engler também dirige o recém-criado
Clube Latino de Imaginologia Molecular, cujo objetivo é integrar toda a rede
médica da região, e torce para que seu estudo ajude a encontrar uma cura para o
Alzheimer, cujos tratamentos, até o momento, são todos paliativos. "Continuo
sendo um revolucionário, agora lutando contra as doenças. O socialismo é não um
fim, nunca vamos poder experimentá-lo totalmente", diz. E teoriza: "O
cérebro está formado por dois componentes essenciais, egoísmo e solidariedade.
O egoísmo é necessário para o indivíduo sobreviver. A solidariedade, para a
sobrevivência da espécie. Sempre há uma luta entre o egoísmo e a solidariedade.
E sempre vai existir muito egoísmo, senão o cérebro deixaria de ser cérebro. O
homem precisa controlar seus pensamentos para não deixar o egoísmo
prevalecer."